Divaldo Franco – “A Inveja”

Divaldo Franco – “A Inveja”

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Inveja.
Eis um dos sentimentos mais torpes e difíceis de serem eliminados da alma
humana. Trata-se de um dos vícios que mais causa sofrimento à humanidade. Onde
houver apego à materialidade das coisas, notadamente em seu significado,
naquilo que o objeto de desejo simboliza em termos de bem-estar e status quo,
aí estará a inveja, sobrevoando os pensamentos mais íntimos qual urubu ou
abutre insaciável, esfomeado pela carniça. A cobiça é o seu moto-contínuo.

Há pessoas que se colocam como cães de guarda, sempre alertas ao menor ruído.
Basta alguém se destacar em alguma área, por mais ínfima que seja e lá estará o
invejoso, pronto para apontar o dedo e tentar minimizar o feito de seu próximo.
Uma roupa diferente, um calçado da moda ou mesmo um brinco ou pulseira bem
colocados, já torna-se motivo para elogios, nem sempre sinceros. As mulheres, e
que me perdoem as mulheres, elas são pródigas nesse tipo de expediente.
COBIÇA E BEM-ESTAR
Torna-se necessário, contudo, diferenciar a
inveja, a cobiça, da busca do bem-estar. Não há nada de errado em trabalhar
para se conquistar o conforto necessário à subsistência e às condições
materiais imprescindíveis, visando o aprimoramento e a eficiência em
determinada atividade, sem causar prejuízo ao próximo. Se alguém possui um
objeto ou uma virtude que nos falta, desejá-los com humildade e sinceridade não
é inveja. 

Todavia ela surge, graciosa e sedutora, quando sentimos uma sensação de perda,
um vazio não preenchido pelo objeto de desejo, principalmente quando, numa
formulação mental mesquinha e destrutiva, nos consideramos muito mais dignos do
que aquele que possui o que não temos.

É repreensível cobiçar a riqueza com o desejo de praticar o bem?— O sentimento
é louvável, sem dúvida, quando puro. Mas esse desejo é sempre bastante
desinteressado? Não trará oculta uma segunda intenção pessoal? A primeira
pessoa a quem se deseja fazer o bem não será muitas vezes a nossa? (O Livro dos
Espíritos – Ed. LAKE)

A acepção desta pequena palavra, contida no dicionário Aurélio, é deveras
interessante. “Desgosto ou pesar pelo bem ou pela felicidade de outrem. Desejo
violento de possuir o bem alheio.” Os Espíritos que perturbam a nossa relativa
felicidade, erroneamente chamados de obsessores, a fim de nos ver nivelados ao
seu estado de inferioridade moral, agem movidos pela inveja.

Invejosos eram os fariseus e os saduceus na época de Jesus de Nazaré. Invejosos
foram os que se ressentiram do carisma que o mestre possuía naturalmente em profusão,
sem precisar lançar mão de artifícios, poses e posturas afetadas, às vezes até
necessárias para um político profissional.

Quantos reis e rainhas não foram massacrados, mortos em circunstâncias
misteriosas, efeito direto dessa viciação moral? A chamada “puxada de tapete”,
que ocorre nas empresas, nos vários locais de trabalho, inclusive na família e
onde quer que se reúnam pessoas, sempre acontece sob inspiração desse vício
hediondo e asqueroso.
TRIO DE FERRO
A vaidade e o orgulho, esses dois gigantes da
imoralidade, filhos diletos do egoísmo, combinados proporcionalmente com a
inveja, formam um trio de ferro corrosivo, uma espécie de três mosqueteiros às
avessas. Um triunvirato repugnante e nauseabundo, espécie de tríade repulsiva e
sinistra.

Se nos consideramos mais merecedores do que o próximo que tenha aquele belo
carro do ano, imaginando que seria mais “justo” que aquele objeto fosse de
nossa propriedade, essa fantasia traz consigo um ranço de origem, proporcionado
pela inveja.

Em função desse sentimento mesquinho, muitos grupos espíritas se dividem
(aliás, o movimento espírita cresce mais por divisão do que por uma
multiplicação previamente planejada) na busca tresloucada de espaços de
trabalho, na direção de determinadas atividades, no exercício do poder. É muito
comum vermos subgrupos dentro de um mesmo grupo, a popular panelinha, um tipo
de trincheira, um gueto mesmo, que se arma contra os que conquistaram, ao longo
do tempo, o seu espaço por mérito moral e intelectual.

Esses grupelhos promovem fofocas, queimam pessoas, malham as legítimas
lideranças, desmerecem o trabalho realizado e promovem intrigas. Tudo por
inveja. Não há dor de cotovelo que suporte o sucesso alheio. É por isso que a
cobiça, a avidez desmesurada e destrutiva proporcionam um quadro de morbidez e
infelicidade para aquele que se alimenta desse sentimento maligno.
O INVEJOSO EM AÇÃO
O invejoso não suporta ver um novato invadir
espaços que ele, em sua santa indolência, deixou de ocupar por pura
incompetência e comodismo. Se sente atingido, usurpado e se agarra, com unhas e
dentes, ao espaço que ele acha que é seu e somente seu. Uma sutileza
interessante, já que o homem pré-histórico, movido pelo instinto brutal,
destroçava o seu algoz, a fim de se apropriar de seus pertences. O tempo
passou, a evolução se processou como convém à estrutura das leis naturais, mas
o princípio permanece o mesmo.

O invejoso passa para o boicote, vai minando com fofocas e pequenas atitudes
estrategicamente montadas, a fim de destruir o novo trabalhador da Doutrina.
Quer provar, ao menos para si mesmo, que o espaço é dele, e somente dele.

Do micro-universo do centro à macro-estrutura do movimento espírita, acontece,
analogamente, a mesma situação. Os burocratas do Espiritismo brasileiro, cercados
por seus porta-vozes, asseclas e pseudo-intelectuais, se arrepiam só em pensar
na perda do poder. Quando algum grupo surge, contestando sua concepção
doutrinária e seus esquemas, tratam logo de persegui-lo, taxando-o de antro de
obsedados, de anti-fraternos, anti-espíritas etc.

Não dá para negar que muitos até escrevem livros atacando esses grupos, se
esmeram na elaboração de artigos e fazem palestras, movidos pela boa intenção.
Mas será que, no fundo, não há também uma razoável dose de inveja do vigor da
juventude intelectual e moral que, inevitavelmente, agride os indiferentes?
INSTINTO DEGENERADO
A inveja é uma das facetas do instinto de
destruição degenerado, estagnado, pois ela conduz o invejoso ao extermínio, ao
transtorno e à ruína de si mesmo.

“Puxa, que belo quadro, gostaria de tê-lo pintado!”

“Que livro interessante, desejaria tê-lo escrito!”

“Caramba, que sacada, por que não tive essa idéia antes!”

Se o sentimento de surpresa diante de uma obra, de um feito ou de uma rara
virtude for digno e generoso, não há inveja. Trata-se apenas de um incentivo,
um grande estímulo para que nos empenhemos em adquirir novas virtudes, produzir
quadros mais belos se formos artistas, textos mais requintados se formos
escritores, tortas mais saborosas se formos um mestre-cuca.

O Espiritismo nos ensina que as pessoas que agem de modo desinteressado, com
benevolência e ternura, de forma natural, sem afetações, sem hipocrisia, são
como velhos guerreiros que no passado já autoconstruiram e conquistaram sua
grandeza moral. Ter o desejo de se comportar como essas pessoas não é inveja.
Se fosse, seria uma inveja deveras singular.

Daí que o modelo de virtude eleito pelo Espiritismo, Jesus de Nazaré, torna-se
ao menos para nós, ocidentais, uma referência longínqua e ao mesmo tempo muito
próxima, uma baliza, um marco para a busca necessária da virtude, de uma ética
condizente com as leis naturais.
A VIRTUDE
Segundo Platão e Sócrates, virtude não se
ensina. A virtude (aretê) nada tem de opiniático. Trata-se de um dom ofertado
por Deus, segundo a concepção socrática. Mas virtude é conhecimento, e como
tal, segundo os gregos, não pode ser ensinada. Ou seja, não é uma técnica, um
conhecimento formal, que possua o mesmo sentido lógico e racional de uma
equação matemática ou mesmo de um teorema. Esse aforismo conhecer a si mesmo, a
grande máxima inscrita no Templo de Delfos e adotada por Sócrates, é um dos
fundamentos de sua doutrina. 

Com Sócrates e Platão entendemos que aprender é recordar, relembrar, é rever,
revisitar. Eles eram reencarnacionistas e inauguraram uma concepção toda nova
do que se convencionou chamar de alma (psiquê), algo imponderável e que
sobrevive à matéria. Não foi à-toa que Allan Kardec os considerou, e com razão,
como precursores do Espiritismo.

Essa questão da virtude, na história da filosofia, é uma das muitas questões
ainda em aberto. Os neo-platônicos, existencialistas, marxistas, positivistas,
neo-evolucionistas, e outros istas não se entendem em relação a essa questão.
Nem mesmo os espiritistas. Intelectuais espíritas, de mentalidade cristã e
formação religiosa, possuem pontos de vista nem sempre compatíveis com
espíritas de mentalidade laica e formação mais filosófica e científica.

Segundo o Espiritismo, a evolução moral nem sempre acompanha a evolução
intelectual. No processo evolutivo é necessário primeiramente o conhecimento do
bem e do mal, somente possível em função do desenvolvimento do livre-arbítrio,
consequência natural do aprimoramento intelectivo. A evolução moral é uma
consequência da evolução intelectual. “A moral e a inteligência são duas forças
que não se equilibram senão com o tempo” ( LE – p. 780-b).

A virtude, segundo o Espiritismo, é uma qualidade primária, um atributo, uma
característica variável em função do nível evolutivo do Espírito, o sujeito
pensante, que sente, reflete e age. A virtude é uma propriedade moral adquirida,
conquistável. Segundo Kardec, “aquele que a possui a adquiriu pelos seus
esforços nas vidas sucessivas, ao se livrar pouco a pouco das suas
imperfeições” (O Evangelho Segundo o Espiritismo – Introdução – LAKE).

Para se combater os vícios, nada melhor do que aprimorar as virtudes, com
conhecimento de causa. Aí está a chave da questão. O ato de reprimir as
viciações é sempre louvável, mas se não vier acompanhado de um processo de
autoconhecimento, de autopercepção, não terá sentido. Sem uma atitude racional,
sem o devido bom senso, o que temos é a hipocrisia, a repressão cega e
insensata com o verniz da virtude piedosa, uma usina produtora de sepulcros
caiados.
A EDUCAÇÃO
O Espiritismo nos oferece uma compreensão
racional muito bem fundamentada na observação, na experimentação. A base de
todas as viciações se acha no abuso das paixões. “As paixões são como um cavalo
que é útil quando governado e perigoso quando governa.” (LE – p. 908).

O princípio das paixões não é um mal. O mal está no exagero, nos excessos e nas
consequências nefastas que possam existir quando há o abuso. Segundo o
provérbio latino, “o abuso não desmerece o uso”.

A saída que o Espiritismo propõe é a educação. Nesse sentido, podemos afirmar
que, ao contrário dos filósofos clássicos, a virtude pode ser ensinada, não no
sentido tecnológico, formal, mas como um conjunto de caracteres passíveis de
serem moralmente formatados.

O comentário de Allan Kardec, a esse respeito, é bem elucidativo: “A educação,
se for bem compreendida, será a chave do progresso moral. Quando se conhecer a
arte de manejar os caracteres como se conhece a de manejar as inteligências,
poder-se-á endireitá-los, da mesma maneira como se endireitam plantas novas.
Essa arte, porém, requer muito tato, muita experiência e uma profunda
observação. É um grave erro acreditar que basta ter a ciência para aplicá-la de
maneira proveitosa.” (LE – p. 917)

A educação segundo o Espiritismo é moralizante. O moralismo hipócrita não cabe
em seus princípios. A educação espírita é libertária sem ser libertina. Ela não
é religiosa; é cultural, reflexiva e tolerante.

Trabalho, solidariedade e tolerância, o lema que Kardec adotou para si se
constitui, em termos sintéticos, numa atitude entusiasta e viril diante da
vida. Sentimentos viciosos como a inveja, o orgulho, a hipocrisia, dentre
tantos outros, se esvaem, tendem a se diluir e se reordenar diante do processo
de transformação moral que o Espiritismo propõe, na incessante busca da
sabedoria e da virtude.



Texto originalmente publicado no jornal de cultura espírita Abertura, em julho
de 1998. 

Autor: Divaldo Franco

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