Flávio Gikovate – “Vaidade, agressividade e inveja”

Flávio Gikovate – “Vaidade, agressividade e inveja”

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Estamos tratando de um dos
aspectos mais intrigantes da nossa condição: nascemos diferentes uns dos outros
e vivemos numa sociedade onde, inexoravelmente, algumas propriedades serão mais
valorizadas do que outras. Os critérios de beleza poderão variar de uma
sociedade para a outra, de uma época para a outra. Porém, sempre algumas
pessoas serão tidas como mais belas; e elas sempre serão poucas, visto que o
que é menos frequente chama mais a atenção. A inteligência sempre será
valorizada e, quando especial, criará facilidades para a vida prática de seus
portadores. O mesmo vale para o vigor físico, para dotes artísticos especiais,
para a facilidade no trato com as pessoas etc.

Mesmo em um contexto ideal, no
qual a competição não seja estimulada e seja até mesmo desencorajada, penso que
a questão da comparação das pessoas entre
si tenderia a ocorrer, gerando desconforto e humilhação em algumas das que se
sentissem menos favorecidas. Acredito que, num ambiente não competitivo, muitas
pessoas não se sentiriam tão prejudicadas por não serem portadoras de prendas excepcionais
(o oposto do que acontece em sociedades como a nossa de hoje, onde a ambição,
mesmo desmedida, é tida como virtude). Talvez fosse possível observar mais
atentamente até mesmo o lado negativo daquilo que é muito valorizado: mulheres
muito bonitas se acostumam a chamar a atenção por esta via e, com frequência,
se tornam displicentes no cultivo de outras prendas. Mas a vida é longa, a
beleza é efêmera e talvez tenham uma maturidade e velhice mais sofridas do que
aquelas que nunca apostaram muito em sua aparência física. Este é apenas um
exemplo, mas poderia ser estendido para outras propriedades muito valorizadas.


Ainda que em menor intensidade
e envolvendo um menor número de indivíduos, é provável que algumas pessoas se
sentissem prejudicadas pelo fato de não terem sido as eleitas para serem
portadoras de tantas prendas. Ao se compararem, sentirão a dor típica da ofensa
à vaidade que é a humilhação. Sentir-se-ão agredidas pela simples presença
daquelas virtudes no interlocutor. Reagirão com a agressividade típica deste
tipo de mecanismo que chamamos de inveja: farão algum comentário depreciativo,
desprezando justamente aquilo que gostariam de ter; farão com humor para
disfarçar a sensação de inferioridade que está embutida em toda ação invejosa.


A agressividade sutil dirigida
contra pessoas, que nada fizeram a não ser existirem e serem como são, é a
marca registrada da inveja.


Penso que é quase impossível
que a inveja não exista. As pessoas teriam que ter a docilidade de aceitar sua
condição sem nenhum tipo de frustração. Teriam que viver numa sociedade que não
privilegiasse virtudes excepcionais e sim as de caráter democrático, acessíveis
a todo o mundo. Teriam que, ao se comparar com as outras pessoas, não construir
uma hierarquia: teriam que se reconhecer como diferentes e não como superiores
ou inferiores. Este seria o mundo ideal, onde as pessoas seriam amigas e
solidárias: estamos mais próximos do fim dos tempos do que dele.


O que não tem o menor sentido é
atuarmos, consciente e deliberadamente, no sentido inverso, na direção de
estimularmos a vaidade, a competição e, portanto, a rivalidade e a hostilidade
entre as pessoas. Não sei se todas as pessoas são plenamente conscientes, de
modo que vale o alerta: não se trata de um caminho obrigatório, pois não somos
assim escravos da nossa biologia. Podemos amenizar ou estimular uma dada
predisposição que faça parte de nossa natureza. Estamos no sentido inverso,
transformando as pessoas em inimigos, rivais. As pessoas estão cada vez mais
solitárias e desamparadas. Quanto mais fracas emocionalmente estiverem, mais
serão escravas das felicidades aristocráticas, por meio das quais se sentem momentaneamente
importantes. O círculo vicioso que estamos vivendo é terrível e já temos claros
sinais de para onde é que estamos nos dirigindo.


Flávio Gikovate



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